Fisioterapia com IA na prática: benefícios, resultados e riscos

A Dor Lombar Crônica Inespecífica (DLCI), condição em que não há um motivo aparente para a dor, é uma das principais causas de incapacidade global. Mais de 85% dos pacientes que apresentam dor lombar em ambientes de atenção primária sofrem desta condição.

Um artigo publicado no The Guardian, em julho de 2025, noticiou que a Flok Health, uma clínica de fisioterapia alimentada por inteligência artificial (IA), conseguiu reduzir, durante um ensaio piloto, em 55% as listas de espera para dores nas costas no Serviço Nacional de Saúde (NHS) da Inglaterra. Esta tecnologia trata da DLCI, diminuindo a carga de trabalho dos profissionais, e permitindo que se concentrem em condições musculoesqueléticas (MSK) mais complexas.

Neste artigo vamos conhecer como funciona esta clínica de fisioterapia por IA, como outras soluções estão sendo utilizadas para tratamento de dores nas costas, seus benefícios, resultados e riscos.

Fisioterapia digital: Como funciona a clínica de fisioterapia por IA

O que é a Flok Health e como funciona

Fundada por Finn Stevenson e Ric em 2022, com sede em Cambridge, Reino Unido, a Flok Health utiliza filmagem de um fisioterapeuta humano para oferecer sessões de vídeo automatizadas por meio de um aplicativo.

Exemplo de exercício sendo ensinado através da plataforma da Flok Health | Fonte: Site Oficial da Flok Health

Este fisioterapeuta é capaz de responder ao paciente em tempo real, e gerar mais de um bilhão de combinações de tratamento possíveis.

Integração da Flok Health na prática clínica e processo de atendimento ao paciente

  • Encaminhamento: o paciente é encaminhado para a plataforma por meio do clínico geral, ou por si próprio;
  • Avaliação inicial e triagem: no primeiro contato com a ferramenta ocorre uma avaliação através do fisioterapeuta digital, que interage com o paciente para avaliar se a ferramenta é adequada ou se deve ser encaminhado a um especialista;
  • Tratamento personalizado: se o paciente for aceito no programa, é inscrito em uma série de consultas semanais em vídeo, e exercícios, adequados às queixas do paciente, são selecionados e ensinados;
  • Módulos de terapia: além dos exercícios físicos, outros módulos fazem parte do programa, como educação relacionada à dor, e técnicas de relaxamento e mindfulness, que ensinam a lidar com os aspectos psicológicos e sensoriais da dor;
  • Monitoramento e suporte humano: a solução conta com uma equipe de fisioterapeutas e médicos humanos, que monitoram o progresso do paciente, podem entrar em contato, ou serem contactados, para suporte.
Processo de triagem e avaliação | Fonte: Site Oficial da Flok Health

Quais os benefícios da Flok Health para o paciente e para o sistema de saúde

  • Acesso imediato e sem lista de espera: o paciente consegue iniciar o tratamento instantaneamente, eliminando listas de espera;
  • Redução da carga sobre clínicos: no ensaio piloto, de 12 semanas, ocorrido entre fevereiro de 2025 e junho de 2025, no NHS, a clínica de IA da Flok economizou 856 horas de tempo, por mês, dos profissionais de saúde;
  • Alta satisfação dos pacientes: todos os participantes afirmaram que a experiência foi pelo menos equivalente a ver um profissional humano, e 57% consideraram a experiência com IA melhor;
  • Melhora nos sintomas: mais de quatro em cada cinco (86%) relataram melhora nos sintomas durante o tratamento.

Além da Flok Health, outras soluções de saúde digital têm sido utilizadas na fisioterapia

Kaia App (Kaia Health Software GmbH)

Desenvolvido pela Kaia Health Software GmbH, empresa sediada em Munique, Alemanha, o Kaia App foi lançado em 2016, mas é reconhecido como um dos aplicativos de saúde digital (DiGAs), para tratamento de dor lombar, desde 2020.

Uma grande equipe multidisciplinar, com neurologistas, cirurgiões ortopédicos, médicos da dor, psicólogos clínicos e fisioterapeutas, estiveram envolvidos no seu desenvolvimento. Assim como o Flok Health, seu programa foca em dor lombar específica, e envolve três módulos:

  • Educação específica sobre dor nas costas: oferece mais de trinta unidades educacionais sobre o tema, baseado nas últimas diretrizes internacionais de manejo da doença;
  • Fisioterapia e exercícios físicos: são classificados por dificuldade e intensidade, e o aplicativo oferece, ainda, feedback de exercícios baseado na câmera do smartphone com tecnologia de captura de movimento impulsionada por inteligência artificial (IA);
  •  Técnicas de mindfulness e relaxamento: também possui técnicas de respiração, relaxamento muscular, e outras, que ajudam a lidar com a dor.

O usuário registra seu nível de dor diariamente, e o aplicativo não requer equipamentos especiais para a prática dos exercícios, embora um tapete e uma cadeira auxiliem.

A experiência de uso é frequentemente descrita como suave, e as instruções são consideradas claras e fáceis de entender.

Estudo comparativo: tratamento com aplicativo de saúde digital x tratamento com terapeuta humano

Em 2019, pesquisadores afiliados à Technical University of Munich divulgaram um estudo, na revista npj Digital Medicine, que teve como objetivo comparar os efeitos do tratamento do aplicativo Kaia com um grupo de controle de pacientes que receberam tratamento individual e presencial, com profissional certificado.

Um total de 86 pacientes participaram do estudo, que durou doze semanas. E os resultados mostraram que o grupo do aplicativo Kaia reportou uma intensidade menor de dor (média de 2.70 em uma escala de 11 pontos), em comparação com o grupo de controle (média de 3.40). E os pesquisadores concluíram que o uso do aplicativo é eficaz para o tratamento de dor lombar inespecífica, e superior ao tratamento presencial.

O baixo número de participantes pode ser considerado como uma limitação do estudo, uma vez que os próprios autores reconhecem que, para uma análise estatisticamente significativa, seriam necessários 200 pacientes em cada grupo, Kaia App e controle.

E, embora o estudo tenha sido patrocinado pelo desenvolvedor do Kaia App, os autores destacaram que “o patrocinador não teve envolvimento no design do estudo, condução, análise ou interpretação dos dados, nem na redação do manuscrito”.

Hinge Health, Inc.

Existem outras plataformas de fisioterapia digital impulsionadas por inteligência artificial (IA), como a Hinge Health, que utilizam vestíveis (wearables) com sensores que captam o movimento.

Com sede em São Francisco, CA, Estados Unidos, a Hinge Health trata dor crônica nos joelhos e na região lombar, se persistir por pelo menos 12 semanas, e não tiver causa conhecida, como fraturas, infecção, câncer e outras.

Como funciona a solução de fisioterapia impulsionada por IA, que utiliza wearables

  • Após o registro do paciente no programa, lhe é fornecido um tablet com o aplicativo já instalado;
  • Dois sensores de movimento vestíveis Bluetooth com alças são colocados acima e abaixo da região dolorosa, e devem ser usados durante os exercícios;
  • Por meio de animações e vídeos instrutivos, exercícios de alongamento e fortalecimento são transmitidos para o usuário;
  • Os sensores fornecem informações gráficas, em tempo real, sobre a amplitude do movimento e a posição do corpo do usuário;
  • É recomendado, pelo menos, três sessões por semana;
  • Há suporte direto com um profissional da saúde, com quem o usuário pode conversar;
  • E o programa encoraja ao participante registrar seus sintomas duas vezes por semana, para melhor acompanhamento.

Estudo utilizado para determinar se uma plataforma de fisioterapia com IA e wearables é eficaz

Em 2020, pesquisadores publicaram na revista Journal of Medical Internet Research, um estudo que durou doze semanas, com um total de 10.264 adultos com dor crônica no joelho (n=3.796) ou dor lombar (n=6.468). Nele, o objetivo foi determinar se o uso do aplicativo Hinge Health é escalável e eficaz em uma amostra de pacientes do mundo real.

Foi observado, baseado na Escala Visual Analógica (EVA), ferramenta utilizada para medir a intensidade da dor, melhora média de 68,45% na dor. O uso do aplicativo também demonstrou excelente engajamento, uma vez que 73,04% (7.497 de 10.264) finalizaram o tratamento. E, destes, 78,60% alcançaram uma mudança clinicamente significativa na dor.

O que é melhor, fisioterapia por IA com ou sem wearables?

SEM WEARABLESCOM WEARABLES
SOLUÇÕESFlok HealthHinge Health
ENSAIOS CLÍNICOSMais de mil usuários utilizaram por 12 semanasMais de dez mil usuários utilizaram por 12 semanas
MELHORA DA DORMelhora nos sintomas relatada por 86% dos pacientesOs participantes experimentaram uma melhora média de 68,45% na dor EVA
EXPERIÊNCIA DO USUÁRIO57% consideraram a experiência com a IA melhor do que a fisioterapia tradicional73,04% completaram o programa. E a satisfação final foi de 8,97/10

Como podemos ver, ambas soluções, independentemente do uso, ou não, de sensores, apresentaram boa melhora na dor dos usuários, e boa experiência na utilização do aplicativo.

Desafios e limitações da fisioterapia digital e inteligência artificial

  • Julgamento clínico: a inteligência artificial ainda não é capaz de substituir um fisioterapeuta treinado, capaz de lidar com casos complexos, e determinar tratamentos adaptados individualmente;
  • Subestimar ou superestimar a urgência: há casos na literatura na qual a inteligência artificial subestimou a necessidade de cuidado profissional, recomendando autocuidado. E sabe-se que ela pode também superestimar a necessidade de um especialista;
  • Falta de orientação personalizada e correção de postura: nem todos os aplicativos disponíveis fazem correção postural, o que faz com que pacientes prefiram o atendimento presencial de um profissional;
  • Engajamento e adesão: embora o Hinge Health demonstre forte engajamento, o mesmo não se repete com todos os aplicativos, na qual alguns se mostram complexos demais, e desmotivam o usuário;
  • Ceticismo: o uso de aplicativo, e não de um profissional habilitado, pode levar à descrença do usuário quanto à qualidade e eficácio do tratamento;
  • Regulamentação: o cenário regulatório de IA ainda é complexo, e exige maiores discussões sobre questões éticas e responsabilização nas decisões tomadas por IA;
  • Integração e interoperabilidade: a integração e adoção destes aplicativos na prática clínica pode ser desafiadora.

Conclusão

A fisioterapia digital impulsionada por IA já mostra impacto mensurável no manejo da Dor Lombar Crônica Inespecífica (DLCI). No NHS, a Flok Health reduziu em 55% as listas de espera e poupou 856 horas/mês de profissionais, mantendo alta satisfação do paciente. Soluções como Kaia App (sem wearables) e Hinge Health (com wearables) reforçam a efetividade clínica, com melhora relevante da dor e forte engajamento — ainda que com metodologias e públicos distintos.

Para gestores e clínicos, o foco agora é expandir pilotos com avaliação econômica, fortalecer governança de dados e refinar critérios de inclusão/escala. Para pacientes, o recado é claro: a IA não substitui o fisioterapeuta, mas acelera o acesso e pode melhorar resultados quando usada em programas supervisionados.

Se você quer acompanhar como essas soluções podem ser adaptadas à realidade brasileira, continue acompanhando o Neural Saúde — nosso objetivo é traduzir evidência em prática, com qualidade e responsabilidade.

FAQ – Perguntas Frequentes

O que é Dor Lombar Crônica Inespecífica (DLCI)?

DLCI é dor lombar persistente sem causa específica identificável (como fraturas ou infecções). Responde bem a programas estruturados de fisioterapia digital que combinam educação em dor, exercícios e técnicas de relaxamento.

Como funciona a clínica de fisioterapia por IA da Flok Health?

A Flok Health usa vídeos interativos com um fisioterapeuta digital para triagem, prescrição de exercícios e módulos de educação e mindfulness. Há suporte humano contínuo por equipe clínica que monitora o progresso e intervém quando necessário.

Quais foram os resultados do piloto no NHS?

No piloto de 12 semanas (fevereiro–junho de 2025), houve redução de 55% nas listas de espera, economia de 856 horas/mês de profissionais, 86% dos pacientes relataram melhora e 57% avaliaram a experiência com IA como melhor que a tradicional.

IA substitui o fisioterapeuta?

Não. A IA complementa o trabalho clínico em triagem e acompanhamento de casos estáveis. Casos complexos MSK requerem julgamento de um fisioterapeuta humano.

O Kaia App é eficaz para dor lombar?

Estudo comparativo de 12 semanas relatou menor intensidade de dor no grupo Kaia vs. atendimento presencial. Limitações: n reduzido e patrocínio do desenvolvedor (sem envolvimento no desenho/análise, segundo os autores).

Qual o diferencial do Hinge Health com wearables?

Usa sensores de movimento para feedback em tempo real durante exercícios. Em amostra real de 10.264 adultos, houve melhora média de 68,45% na dor (EVA) e 73,04% concluíram o programa.

O que é melhor: fisioterapia digital com ou sem wearables?

Ambas mostraram resultados positivos. Sem wearables (ex.: Flok, Kaia) tende a facilitar acesso e adesão rápida; com wearables (ex.: Hinge Health) agrega precisão de movimento. A escolha depende do perfil do paciente, metas clínicas e recursos disponíveis.

Quais são os principais riscos e limitações?

  • Possível sub/superestimação de urgência em triagem automatizada.
  • Correção postural limitada em alguns apps.
  • Engajamento variável entre plataformas.
  • Desafios de regulamentação, responsabilização e interoperabilidade.

Para quem essas soluções são indicadas?

Adultos com DLCI ou dor crônica de baixo risco, após triagem clínica. Não substituem avaliação presencial quando há sinais de alarme (trauma, infecção, déficit neurológico progressivo, câncer suspeito, etc.).

Quais lições o NHS oferece para adoção no Brasil?

  • Integrar IA ao fluxo de atenção primária com protocolos claros.
  • Garantir supervisão humana e rotas de escalonamento.
  • Medições contínuas de desfechos (dor, função, satisfação) e tempo/economia.
  • Priorizar interoperabilidade e governança de dados.

Referências e Fontes Consultadas

Confira abaixo as fontes utilizadas para a elaboração deste conteúdo sobre fisioterapia digital com inteligência artificial, incluindo estudos científicos, reportagens de veículos especializados e diretrizes clínicas.

  1. Getting It Right First Time – Further Faster Programme
  2. Care Quality Commission – Provider Information
  3. DigitalHealth.London – Flok Health Profile
  4. Care Quality Commission – Location Information
  5. Site Oficial da Flok Health
  6. The Guardian – First NHS physiotherapy clinic run by AI
  7. The Guardian – NHS AI physio halves back pain waiting list
  8. Digital Health – AI physio clinic more than halves NHS back pain waiting list
  9. PubMed Central – PMC12126469
  10. PubMed – 39340666
  11. PubMed – 37420107
  12. PubMed – 39627851
  13. PubMed – 32208358
  14. Nature – npj Digital Medicine, artigo sobre Kaia App
  15. PubMed – 39078682
  16. NICE – Supporting Documentation HTE16

O Neural em Campo é um espaço utilizado para mostrar aos profissionais brasileiros como novas soluções de IA estão mudando a saúde no mundo, e apresentar potenciais soluções a serem importadas ou desenvolvidas no Brasil. Acesse e saiba quais outras tecnologias estão transformando o cuidado e melhorando a prática clínica de profissionais da saúde.

— 🧠 **Por Gustavo Giannella, para o Neural Saúde** Biomédico especialista em diagnóstico por imagem e inteligência artificial aplicada à saúde. Editor do portal NeuralSaude.com.br, dedicado a mapear e explicar como a IA está transformando a medicina no Brasil. 📩 Quer acompanhar as novidades? Siga o [Instagram @neuralsaude] ou visite o site [www.neuralsaude.com.br] —

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