Em estudo publicado no The Lancet Gastroenterology & Hepatology, em 12 de agosto de 2025, observou-se que a taxa de detecção de adenomas (lesões pré-cancerosas) realizada por endoscopistas sem o auxílio de inteligência artificial (IA) caiu de 28,4% antes da introdução da IA, para 22,4% após sua implementação.
Este resultado sugere que o uso rotineiro da tecnologia pode comprometer a habilidade de profissionais da saúde, e levar à desaprendizagem, ou deskilling, um dos principais fatores de preocupação na implementação da tecnologia na área médica.
Neste artigo vamos conversar sobre o tema, e levantar medidas eficazes que possam minimizar este risco.
🎯 Deskilling médico: o que é e por que a IA pode causá-lo?
O deskilling é um processo no qual profissionais perdem ou reduzem suas habilidades práticas e cognitivas devido à substituição de tarefas antes realizadas por sistemas automatizados, algoritmos ou inteligência artificial. Em saúde, isso pode ocorrer quando tecnologias assumem etapas críticas do diagnóstico ou da tomada de decisão, diminuindo a frequência com que médicos e outros profissionais exercitam competências fundamentais.
Estudo sobre a detecção de adenomas sem a inteligência artificial
O estudo mencionado no início do post envolveu 1.443 pacientes, e teve como objetivo avaliar como endoscopistas, que utilizam IA regularmente, realizam colonoscopias quando ela não está disponível. Ou seja, foi justamente avaliar o deskilling.
Para isso, avaliaram a qualidade das colonoscopias realizadas entre setembro de 2021 e março de 2022, em quatro centros da Polônia. Os pesquisadores decidiram excluir os primeiros cem exames de cada centro, após a implementação da IA, por considerar como um período de transição. Endoscopistas que não realizaram exames em ambas fases do estudo, também foram excluídos.
Dos 1.443 pacientes que realizaram colonoscopias padrão sem assistência de IA, 795 foram antes de sua implementação, e 648 depois. Entre os profissionais responsáveis pelo exame, 16 médicos e 3 cirurgiões gerais, cada um com mais de 2.000 colonoscopias realizadas.
Resultados do estudo: queda na detecção de adenomas sem IA
- Observou-se uma redução absoluta de 6% na detecção de adenomas (de 28,4% para 22,4%);
- Esta redução ocorreu tanto em médicos (6,1%), quanto em cirurgiões (8,3%);
- E, dos profissionais observados no estudo, onze diminuíram sua taxa de detecção de adenoma, enquanto apenas quatro aumentaram.
Limitações do estudo
Várias limitações podem ser citadas, dentre elas:
- Características dos pacientes: os pacientes comparados podem não ter características de base totalmente comparáveis;
- Participação de apenas endoscopistas experientes: profissionais com menor experiência não foram incluídos no estudo;
- Aumento de carga de trabalho: após a implementação da IA, o número de colonoscopias realizadas quase dobrou, o que pode ter aumentado a carga de trabalho e influenciado nos resultados dos exames;
- Curto período de observação: o estudo sugere queda de habilidade em três meses, um tempo considerado muito curto para uma verdadeira perda de habilidade.
Interpretação dos autores sobre os efeitos da IA na prática médica
Os pesquisadores entendem que a exposição contínua a sistemas de suporte à decisão, como a inteligência artificial, pode levar a uma tendência humana natural de confiar excessivamente em suas recomendações, resultando em clínicos menos motivados, menos focados e menos responsáveis ao tomar decisões cognitivas sem a assistência da IA.
E sugerem que mais estudos prospectivos robustos sejam realizados para maior avaliação e compreensão do real impacto desta exposição na capacidade do médico.
📉 Evidência histórica de deskilling na área da saúde
Evidência pré-IA de deskilling em mamografias: estudo de 2004
Mesmo sem inteligência artificial como conhecemos nos dias de hoje, um estudo publicado na Academic Radiology, em 2004, por Alberdi et al., já demonstrava a perda ou redução de habilidades humanas devido à confiança em ferramentas automatizadas.
No estudo, os pesquisadores investigaram como erros de sistemas de detecção assistida por computador (CAD) afetam a tomada de decisão de profissionais humanos em mamografias. A avaliação foi dividida em duas etapas: o primeiro grupo de profissionais revisou 60 mamografias de cânceres marcados pelo CAD como negativos (falsos negativos); e depois, estes mesmos exames, agora sem marcação de negativo pelo CAD, foram revisados por um outro grupo de profissionais.
Nos exames marcado pelo CAD como negativos, apenas 21% das decisões dos profissionais foram recomendar recall, ou seja, foram corretas. Quando não houve marcação do CAD, 46% recomendaram recall corretamente.
Estudo de 2023 mostra maior influência negativa da IA em radiologistas inexperientes
Um estudo publicado na revista Radiology, em maio de 2023, também avaliou como o viés de automação afeta a decisão de radiologistas. Entretanto, neste artigo também foi avaliado o nível de experiência dos profissionais.
Vinte e sete radiologistas, divididos entre muito experientes, moderadamente experientes, e inexperientes, avaliaram 50 mamografias, na qual doze continham sugestões incorretas de BI-RADS, sistema de classificação de lesões, por parte de um sistema de IA simulado.
Na leitura dos exames, os pesquisadores colocaram as dez primeiras imagens com sugestões corretas da IA, para gerar confiança, e as doze incorretas ficaram entre as demais imagens.
Para medir o desempenho dos leitores, a acurácia foi comparada entre a leitura das imagens corretas e incorretas. E observou-se que todos os níveis de experiência são suscetíveis ao viés de automação quando assistidos por sistemas de IA em mamografia. Entretanto os radiologistas mais inexperientes tiveram a maior redução de precisão:
- Inexperientes: de 79.7% para 19.8%;
- Moderadamente experientes: de 81.3% para 24.8%;
- Muito experientes: de 82.3% para 45.5%.
🛡️ O que fazer para mitigar o risco de perda de habilidades
- Educação e treinamentos abrangentes: realizar programas de educação contínua, focar no desenvolvimento e manutenção de habilidades diagnósticas, ensinar os profissionais a julgar a confiabilidade das ferramentas de IA, proporcionar aos estudantes atividades práticas que envolvam aplicações reais da IA, etc;
- Transparência e explicabilidade da IA: proporcionar ao usuário o entendimento do processo de raciocínio da IA, fazendo com que os profissionais da saúde tenham clareza quanto aos resultados ou previsões do algoritmo;
- Níveis de confiança: apresentar os níveis de confiança dos resultados da IA também pode ajudar a reduzir o viés de automação;
- Supervisão constante: os profissionais devem supervisionar as saídas das ferramentas automatizadas, evitar a superdependência e manter a autonomia do clínico;
- Consciência da tendência de viés: os profissionais devem estar cientes do risco, e de como o viés pode afetar suas decisões.
🧩 Conclusão: Como equilibrar o uso da inteligência artificial e a preservação das habilidades médicas?
O avanço da inteligência artificial na medicina trouxe ganhos significativos em precisão diagnóstica, eficiência e acesso. No entanto, estudos recentes — como os analisados neste artigo — revelam um risco real: o fenômeno do deskilling, ou desaprendizado clínico, que pode comprometer a autonomia e o raciocínio médico em situações críticas.
Para que a automação médica atue como aliada, e não como substituta nociva, é essencial investir em educação continuada, desenvolver sistemas explicáveis e manter o olhar clínico ativo na validação das decisões da IA. A segurança no uso da inteligência artificial depende, sobretudo, da consciência humana sobre seus limites.
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🔗 Referências científicas e fontes consultadas
- Estudo original sobre deskilling com IA em colonoscopias — The Lancet Gastroenterology & Hepatology (2025)
- Reação de especialistas ao estudo observacional sobre IA e detecção de adenomas — Science Media Centre
- Viés de automação na radiologia: influência da IA em médicos com diferentes níveis de experiência — Radiology (2023)
- Impacto de sistemas CAD na decisão médica em mamografias — Academic Radiology (2004)
- Efeitos da exposição prolongada à IA em desempenho clínico — PubMed (2025)
- Avaliação do deskilling em ambientes assistidos por IA — PubMed (2023)
- Estudo sobre perda de atenção clínica com uso contínuo de IA — PubMed (2024)
- Inteligência artificial e tomada de decisão médica: riscos e benefícios — PMC Open Access
- Deskilling em radiologistas com uso de IA — Insights into Imaging (2024)
- Deskilling e inteligência artificial: uma revisão crítica — Journal of Biosciences and Health (Brasil)
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— 🧠 **Por Gustavo Giannella, para o Neural Saúde** Biomédico especialista em diagnóstico por imagem e inteligência artificial aplicada à saúde. Editor do portal NeuralSaude.com.br, dedicado a mapear e explicar como a IA está transformando a medicina no Brasil. 📩 Quer acompanhar as novidades? Siga o [Instagram @neuralsaude] ou visite o site [www.neuralsaude.com.br] —



